Cordões reluzentes, brincos de diamante nas orelhas, roupas de grifes estrangeiras, carros imponentes e assédio constante de mulheres e fãs. Com essa descrição, não é preciso qualquer outra dica para uma criança matar a charada: trata-se de um jogador de futebol. O estereótipo que se tornou senso comum e empolga milhares de jovens Brasil afora a seguirem os caminhos da bola, porém, está longe de ser padrão. No país do futebol, a realidade é cruel e a imagem ilusória. Longe do glamour da elite, a Série D abriga operários da bola. Profissionais que no lugar dos celulares ou chaves de automóveis, carregam no bolso a carteira de trabalho, simples e comuns como qualquer cidadão.
Lateral do Plácido de Castro, Irisvaldo sustenta a família vendendo pastel (Cahê Mota/Globoesporte.com)
Divisão mais baixa do futebol brasileiro, a Série D é um celeiro de atletas das mais variadas histórias. Todas de superação, nenhuma de luxo. Em visita a região Norte, de futebol menos desenvolvido do país, o GLOBOESPORTE.COM encontrou uma realidade bem diferente dos salários milionários que transformam Ronaldinhos e “Neymares” em espelhos. Com remuneração que varia de um salário mínimo (R$ 545) a R$ 7 mil – passando por jovens que ainda jogam de graça -, a quarta divisão transforma em privilegiado aquele que se dá o direito de viver apenas do esporte que se apaixonou quando criança.
Vigilante, pescador, eletricista e pasteleiro se dividem entre o sonho da bola e a obrigação de sustentar a família em uma vida dupla que não lhes causa o mínimo constrangimento. Muito pelo contrário. É o caso do acreano Irisvaldo. Nascido em um seringal na Bolívia e registrado em Plácido de Castro, o lateral-direito da equipe que leva o nome da cidade natal vingou tarde no futebol, com 30 anos – hoje tem 33 -, mas se orgulha por fazer do esporte uma diversão diante de uma trajetória marcada por sonhos, dor e superação.
- Nasci no seringal e vim para cidade com oito anos. Meu pai sempre me incentivou a ser profissional e apostou em mim. Quando eu tinha 13 anos, ele se desentendeu com um cara em um campo de pelada, foi esfaqueado e morreu. Ali, acabou o meu sonho. Não tinha quem me apoiasse e não queria mais jogar futebol. Acabei indo morar em uma serraria para trabalhar, onde fiquei por 10 anos. Em 2008, o Plácido virou profissional e abriu para teste. Fiz e fui aprovado. Pude realizar o sonho do meu pai, mesmo depois dessa idade. Jogo pelo sonho, não pelo dinheiro. Sei que não vou sair daqui, mas sou feliz como se fosse do Flamengo, Corinthians... Sou realizado – disse em testemunho que fala por si só.
Pastel, bola e gratidão
Casado e pai de três filhos, Iris recebe R$ 1.500 no atual vice-campeão do Acre. Valor que está na média da maioria dos clubes da Série D, mas abaixo do que fatura no ofício onde realmente tira o sustento da família: comerciante. Lateral-direito por prazer, ele tem como principal virtude o talento na cozinha, onde produz pastéis, coxinhas e rissoles para encomenda. O pastel, no entanto, é a especialidade da casa. De acordo com o pedido, até mil são feitos e entregues diariamente na rodoviária. O lucro mensal? R$ 2 mil líquidos! Irisvaldo cobra R$ 23 por cada cota de 100 pastéis pequenos e R$ 0,75 nos grandes, produzidos nos sabores queijo, carne e misto para serem revendidos a R$ 1.
O sucesso na cozinha faz com que o lateral do Plácido de Castro tenha uma qualidade cada vez mais em falta no futebol: os pés no chão. Sem se iludir, ele sabe que sua trajetória nos gramados não ultrapassará as fronteiras de sua cidade, mas se diz satisfeito, realizado e grato com a história escrita em três anos como profissional.
- Nunca tinha andado de avião, poxa. Realizei esse sonho, fiquei concentrado em grandes hotéis, joguei uma final de estadual, uma competição oficial da CBF... Fiz tudo que sempre imaginei vendo TV. Futebol é um mundo de sonho. Quem dera se todos sentissem esse gostinho.
Os traumas do passado? Ficaram no passado. De cabeça em pé, Irisvaldo não encara, mas desfruta a vida que tem na fronteira com a Bolívia. Com rotina simples, aproveita as folgas quando o time não joga no fim de semana para visitar o seringal onde nasceu. No caminho, onças e outros animais surgem como perigo na caminhada de três horas.
- Nunca reclamei da vida. Sou perfeito, tenho saúde. Quando era pequeno, só tomava café e almoçava. Só fui saber o que era pizza, sorvete, essas coisas, depois de velho. Hoje, sustento minha família, minhas filhas. Sou muito feliz.
Goleiro, pescador e sonhador
Feliz como Adenildo, companheiro de profissão com história tão parecida e sonhos bem opostos. No auge de seus 17 anos, o goleiro do Vila Aurora (MT) é daqueles que cultiva as mais profundas ambições despertadas pelo futebol. Revelado nas categorias de base do clube de Rondonópolis, estreou como profissional justamente contra o Plácido de Castro de Irisvaldo e de cara com uma goleada de 9 a 1. Placar assustador, mas que não diminui a esperança do jovem. Ele encara como apenas mais um obstáculo, como os que está acostumado a enfrentar diariamente do sítio onde mora até o CT.
- Meu pai é pescador profissional e faço bico com ele. Também quebro um galho de garçom, essas coisas, para ganhar dinheiro e poder treinar. Todo dia acordo por volta das 6h da manhã para ajudar meu pai, vou treinar umas 8h, depois volto para o sítio, que fica a 40km do CT. Pego dois ônibus e depois busco uma carona.
O bico rende cerca de R$ 100 reais por mês ao jovem, que ainda não recebe nada como profissional do Vila Aurora. O valor, para muitos irrisório, é suficiente para alimentar o sonho de Adenildo, que, apesar da goleada, vai guardar para sempre o que viveu na tarde de 10 de setembro, na Arena da Floresta, em Rio Branco, no Acre.
- Foi meu primeiro jogo como profissional, em uma competição oficial da CBF, como titular... Só posso agradecer a Deus. Ele faz sempre o melhor.
Lançado em um funil cada vez mais apertado, o goleiro tem consciência do mundo de ilusões que cerca um iniciante no futebol. Entretanto, prefere se agarrar a minoria que vê a fantasia virar realidade para seguir os passos de um ídolo.
- Meu ídolo é o Júlio Cesar. Sonho um dia chegar onde ele chegou, acredito que posso ser abençoado e seguir essa carreira. Sei que minha realidade hoje é bem diferente, mas quem chegou lá em cima batalhou bastante. Tenho que seguir esse caminho e acreditar que se da Série D só sair um, esse um serei eu.
Em dez meses, cinco dias em casa
Caso não consiga se tornar um novo Júlio Cesar, não faltarão exemplos a Adenildo para mostrar que a luta dos operários da bola não se encerra na primeira frustração. Palco de nômades do futebol, a Série D abriga incontáveis histórias de quem faz do esporte sua profissão padrão e responsável pelo sustento da família sem que necessariamente se iluda com os milhões dos supercraques. É o caso de Lucas, zagueiro de 27 anos do Plácido de Castro.
Nascido em Foz do Iguaçu, no Paraná, fronteira com o Paraguai, ele caminhou bastante até chegar a seu quarto na pousada onde os jogadores placidianos ficam alojados, a menos de 100 metros da Bolívia. São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Tocantins, Goiás, Alemanha e Uruguai fazem parte do currículo do jogador, que já tem compromisso com o Aparecida de Goiânia, da Terceirona de Goiás, quando deixar o Acre.
- A palavra que me guia é esperança. Sei que lá em cima, na elite, as coisas são boas, tem visibilidade, salários altos... Já tive a oportunidade de chegar perto, e se voltei é porque fiz alguma coisa errada. Tenho que trabalhar para acertar. Já pensei em parar, mas surgiu outra oportunidade e acabei persistindo.
Campeão tocantinense pelo Gurupi, neste ano, Lucas passou incrivelmente apenas cinco dias em casa com a família em todo 2011. Tanto sacrifício é justificado pelo prazer de exercer a profissão que escolheu.
- Vale a pena. Faço o que eu gosto, é isso que importa. Tenho que continuar batalhando para poder ajudar minha família, realizar meus sonhos. O que digo aos mais novos é somente para não deixarem de estudar, porque se não der certo no meio do caminho, têm o que fazer.
A perseverança com que Lucas encara o futebol muito tem a ver também com uma verdade revelada por Manoel Paulo, técnico do Vila Aurora. Se os percalços de uma disputa como a Série D podem transformar o mundo da bola em frustração para quem sonhava ser um novo Ronaldinho, estes mesmos se sentem privilegiados em um mercado cada vez mais escasso.
- A Série D é um choque de realidade. Desde que comecei a trabalhar com categorias de base, se eu treinei mil garotos, no máximo dois ou três têm uma estrutura razoável atualmente, com carro e casa. A verdade é bem diferente do que vendem. É importante dizer isso para quem pensa que o futebol é um mar de rosas. E isso está longe da realidade. Não dá para pensar em ser Ronaldinho, Neymar... A verdade é que tem muita gente desempregada.
Labilá, a celebridade da Série D
Labilá exibe camisa comemorativa pelos 150 jogos no São Raimundo (Cahê Mota/Globoesporte.com)
Se não dá para ser ídolo nacional, há quem se contente em distribuir autógrafos e fotos nas fronteiras regionais. Campeão brasileiro da Série D pelo São Raimundo em 2009, o goleiro Labilá é apontado como celebridade na pequena Santarém, no interior do Pará. Com 150 jogos recém-completados pelo Pantera, ele se diz plenamente satisfeito com sua realidade.
Dono de casa própria, carro, moto e uma loja, o arqueiro pode ser considerado um popstar para os padrões da quarta divisão, e se comporta como tal.
- Sempre busquei esse reconhecimento como jogador. Não sou ídolo só em minha cidade. Sou ídolo em Manaus, onde joguei três anos, dou autógrafos, tiro fotos, e tudo que envolve minha carreira sai na imprensa. Já no Pará, sou um ídolo estadual. Em todos os lugares que vou, todo mundo me assedia. Sou um cara muito elogiado, até mesmo por ser pequeno e fazer grandes defesas. Algumas vezes, até onde não me conhecem, param e perguntam: “Cadê o Labilá?”.
Com 1,79m, Labilá contrariou prognósticos decepcionantes quando jovem para se tornar um ícone na posição no estado do Pará. Perguntado se uma proposta de equipes em divisões acima o balançaria, a resposta veio de primeira.
- Aqui é minha cidade, conheço todo mundo, a torcida gosta do meu trabalho, me respeita bastante, minha opinião é ouvida no grupo, e isso é o que é importante. Vivo tranquilo com minha família. Minha ideia é viver a carreira por aqui mesmo, fazer história com o São Raimundo.
Quem também quer fazer história no São Raimundo, mas por outros motivos, é o atacante Belo. Aos 30 anos, ele vive sua primeira experiência em uma competição nacional e deixou a família em uma vila distante, no município de Óbidos, interior do Pará, para buscar uma vida melhor. Uma transferência salvadora é vista como utopia, e todo esforço é feito para aproveitar ao máximo o pouco tempo que ainda terá como jogador. Morando no alojamento do clube, ele sequer toca nos R$ 1 mil mensais que recebe e repassa para a esposa, filha e a mãe, que mora sozinha há 16 anos em um quarto alugado.
Tenho alimento e moro no clube. Não posso ficar com o dinheiro. Deposito tudo para minha mãe e minha família"
Belo, atacante
- Tenho alimento e moro no clube. Não posso ficar com o dinheiro. Deposito tudo para minha mãe e minha família.
Essa realidade simples de “ajudar com o que der” é o que norteia muitos dos jogadores que se aventuram na Série D e têm idade avançada para o mundo da bola. Para eles, carro, acessórios e eletrônicos são supérfluos diante da possibilidade de melhorar de vida.
- Luxo não é para todos. Sou do interior, cheguei ao São Raimundo, e apenas busco uma forma de melhorar minha vida. Luxo, carro, essas coisas, não fazem parte da nossa realidade. O importante é usar o dinheiro para ajudar a família – garante o volante Marcelo Pitbull, de 28 anos, também do São Raimundo.
Estrela em um mundo recheado de caras desconhecidas, o meia Vélber, ex-São Paulo e Paysandu, resume em poucas palavras o sentimento de quem já passou por todas as divisões até defender o time paraense na Série D.
- A realidade aqui é muito diferente. Nunca na minha vida tinha encarado viagens de navio, passar 22 horas, mas... É isso o que tem. O comum aqui é o cara ser guerreiro. O que não podemos é deixar de jogar.
Afinal, o show não pode parar. Com boné para o lado, cordão no pescoço, ou simplesmente com o pés no chão.
Matéria:Cahê Mota/globoesporte.com
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