Torcedores folclóricos apresentam modo peculiar de apoiar São Raimundo (PA), Trem (AP) e Plácido de Castro (AC) em tortuoso caminho da Série D
Uma paixão raramente alimentada por vitórias. Assim é a vida de torcedor na Série D do Brasileirão. Se a região Norte é marcada por arrebanhar grande número de adeptos para os principais clubes dos grandes centros do país, ainda é possível encontrar poucos e fiéis apaixonados por equipes locais, que chamam a atenção por onde passam pelo jeito peculiar de torcer. Assim são Tia Lucinda, Miro do Picolé e Babá. Trio que não faz barulho como a fanática torcida do Santa Cruz, maior da competição, mas não deixa os modestos São Raimundo (PA), Trem (AP) e Plácido de Castro (AC) sozinhos.
Miro do Picolé, Seu Babá e Tia Lucinda: as figuras folclóricas da Série D (Foto: Cahê Mota/Globoesporte.com)
Torcedores folclóricos, eles contribuíram, no mínimo, quatro vezes cada – número de jogos em casa - para que a quarta divisão do futebol brasileiro tivesse 320.041 torcedores nos estádios em toda a primeira fase, encerrada no último domingo com média de 2.286 por partida. Com 42.584 pagantes, o Santa Cruz foi responsável pelo maior público, na segunda rodada, contra o Guarani do Ceará, no Arruda, enquanto Cerâmica (RS) x Oeste (SP), com apenas 15 testemunhas, registraram a decepção da fase inicial. A etapa, por sinal, marcou a despedida de Tia Lucinda, Miro do Picolé e Babá dos estádios em 2011, com a eliminação de seus times. O trio, no entanto, não passou despercebido.
- Seja qual for o resultado, estou ao lado deles. Não é qualquer time que chega onde o São Raimundo já chegou (campeão da Série D de 2009). Então, não podemos só cobrar sempre vitória. É preciso entender que o adversário também dá o máximo. E falo isso para os jogadores. Fico triste, me desespero, choro, faço promessa, mas estou com eles – falou Tia Lucinda em tom resignado pela eliminação e apaixonado pelo Pantera.
Casa, comida e roupa lavada
A professora aposentada, de 60 anos, é talvez a figura mais famosa relacionada ao clube do interior do Pará. Presença constante em todas as partidas no estádio Colosso do Tapajós, Tia Lucinda não tem condição financeira para acompanhar a equipe em compromissos fora de casa (quando deixa quatro rádios ligados na mesma sintonia, conforme faz questão de frisar), mas sua função vai muito além de somente incentivar das arquibancadas. A paixão pelo São Raimundo é tanta que em 2009, ano da conquista da primeira edição da Série D, ela hospedou em sua casa dois jogadores do elenco.
- Agora, por ter uma filha jovem, não posso fazer mais isso, mas todos têm sempre as portas abertas para me visitar e pedir ajuda Os jogadores ficam longe da família, precisam do apoio de quem é da cidade. Então, sempre faço um peixinho para eles, dou um almoço. É importante que se sintam bem, que comam algo diferente do que o clube oferece – explicou.
Atualmente, a participação fora do estádio prevê “apenas” almoços esporádicos com os pratos preferidos do grupo que vive em uma casa alugada pelo clube a poucos metros da moradia da “Tia”, que também lava as roupas dos mesmos. Com quadros e adesivos do Pantera espalhados pela casa, Lucinda é do tipo que fica nervosa já na véspera dos compromissos da equipe e para aliviar a ansiedade todo um ritual é repetido exaustivamente no altar improvisado no próprio quarto.
- Sempre que está se aproximando a hora do jogo, começo a conversar com o santo para amenizar o nervoso, o calafrio. Além do São Raimundo, tem o Sagrado Coração de Jesus, Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida, Santo Expedito, alguns anjinhos... Converso com todos eles e sempre digo: “Essa não é uma guerra, mas uma nova batalha. Precisamos vencer para ver o nome de São Raimundo o mais alto possível. É difícil, mas não é impossível”.
Já no estádio, a imagem do santo na mão direita é presença constante, assim como o beijo a cada jogada de perigo. Nem sempre, porém, as coisas dão certo e não é difícil adivinhar quem acaba pagando o pato.
- Não largo o santo nunca. Por isso, ele está todo remendado. Uma vez, quando sofremos o gol, deixei cair no chão, mas juntei, colei e pedi desculpas.
A fé aliada a superstição não funcionou nas duas últimas temporadas, quando o clube foi rebaixado na Série C e agora eliminado precocemente na D. O sucesso em 2009, porém, rendeu oferendas de fitas com as cores do clube e imagens de São Raimundo, doadas para sede social ou para igreja.
Picolé de graça e torcedor na arquibancada
E se Tia Lucinda tem a paixão pautada na fé, quase 2.000km distante de Santarém outro torcedor folclórico da quarta divisão monopoliza as atenções apelando para o lado comercial: Miro do Picolé. De sorriso fácil e com sua inseparável caixa de isopor, o ambulante é a figura mais espalhafatosa na torcida do Trem, do Amapá, e não perde um só compromisso no estádio municipal Glicério Marques, seja para torcer ou vender.
Garantindo oferecer picolé gigante, grandão, bonitão e gostosão, Miro é conhecido até mesmo entre os jogadores. Antes da final do Segundo Turno do Amapazão, inclusive, passou na frente da concentração a caminho do estádio para incentivar o grupo que acabou levando a melhor sobre o Ypiranga em disputa por pênaltis. O amor pelo Rubro-Negro de Macapá, por sua vez, está longe de ter origem na infância. Pelo contrário, o lado financeiro contribuiu, e muito.
- Eu vendia picolé do lado de fora do estádio e Dona Socorro (presidente do clube) começou a me mandar entrar para vender para torcida dela. Comecei a me empolgar e torcer. Até deixei meu antigo time, que era o Independente de Santana (interior do estado). A maioria dos meus clientes é do Trem, o clube banca meu emprego (risos).
Quando Miro fala em bancar, não é da boca para fora. Alheio a tudo que acontece ao seu redor quando rola a bola, o ambulante deixa até mesmo de oferecer sua mercadoria para incentivar o Trem. Para evitar o prejuízo, a mandatária do clube optou por uma solução que faz sucesso: compra todo estoque nos intervalos e pede que o torcedor-vendedor distribua entre as crianças. A cada ida ao estádio, Miro produz 100 picolés vendidos a R$ 1,50.
Babá, o fiel de Plácido de Castro
Menos extravagante que Miro ou fanático como Tia Lucinda, Seu Babá troca tudo que está fazendo no interior do Acre para apoiar sua mais recente paixão: o Plácido de Castro. Caçula na Série D, com apenas quatro anos de profissionalismo, a equipe que leva o nome da cidade próxima da divisa com a Bolívia cativou o “trabalhador avulso”, como ele próprio define, por um motivo simples: poder realizar o sonho de “participar” de uma competição oficial.
Aos 57 anos, Seu Babá não conseguiu levar a frente o sonho de se tornar um esportista e viu com a formação do time a possibilidade de se aproximar do segmento que sempre acompanhou de longe. Por isso, o trajeto de 100km de Plácido de Castro até a Arena da Floresta, em Rio Branco, tenha sido repetido a exaustão com tanta felicidade em todas as partidas disputadas em 2011.
- Em toda minha vida, sempre gostei de esportes. É o time da cidade e não perco um jogo. Quando dava para eu brincar minhas peladas, brincava. Agora que não dá mais, tenho que torcer. Faço de tudo para estar sempre presente.
As fronteiras do Acre representam o limite para que os olhos de Seu Babá sigam o time do coração. Nascido e criado no interior, ele cultiva hábitos poucos comuns nos dias atuais. E nem mesmo a transmissão ao vivo de uma emissora de TV local dos jogos fora do estado o faz trocar a sala de sua casa ainda com paredes de madeira e o rádio de pilha, inseparável seja onde for. Afinal, é Série D, e quem disse que é para ser fácil?
Matéria: Cahê Mota Direto de Macapá (AP), Plácido de Castro (AC), Rio Branco (AC) e Santarém (PA)/globoesporte.com
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